domingo, 28 de junho de 2015

Hemorragias da Segunda Metade

Introdução
A incidência de hemorragia no terceiro trimestre é de cerca de 3%. As principais causas são o descolamento prematuro de placenta (DPP) e a placenta prévia. O diagnóstico etiológico e a estabilização hemodinâmica são prioridade no manejo dessas pacientes, pois situações como DPP exigem intervenção imediata, sob pena de morte fetal e materna. Cabe lembrar que gravidez ectópicaabortamento e doença trofoblástica gestacional, embora cursem com sangramento na gravidez, não figuram no diagnóstico diferencial do sangramento anteparto, pois são, por definição, hemorragias da primeira metade da gravidez.  Observe a tabela abaixo, do livro Rotinas em Ginecologia (Freitas et al, 2006).
DPP e Placenta prévia são as causas mais comuns.
Frente a uma gestante de terceiro trimestre com sangramento, o toque vaginal deve ser evitado, principalmente quando não há ultrassonografia, pois pode ser catastrófico, por exemplo, quando existe uma placenta prévia subjacente. Caso não haja possibilidade de obter uma USG, o toque deve ser realizado por profissional experiente e em ambiente cirúrgico controlado. Discutiremos agora cada uma das etiologias do "sangramento de terceiro trimestre".

Etiologia 1: Descolamento Prematuro de Placenta
  • É uma condição de alta morbimortalidade que se caracteriza pelo descolamento prematuro da placenta do endométrio, que, quando grave, é marcado por dor abdominal, sangramento agudo, hipertonia uterina, taquissistolia e sofrimento fetal agudo (padrão cardíaco fetal não reativo) que pode evoluir de forma fulminante para morte fetal se não tratada imediatamente, por perda da superfície de troca materno-fetal.
  • Existem descolamentos pequenos que são subclínicos e só são diagnosticados por USG. Em tempo discutiremos a classificação de gravidade do DPP.
  • A placenta se insere no endométrio por volta da vigésima semana.
  • Incide em 1-2% das gestações, e carrega consigo alta morbimortalidade, por estar envolvida ou ser causa direta das seguinte situações:
    • Morte materna (1-2%)
    • Morte fetal (mortalidade perinatal) (40-80%!!)
    • Prematuridade (5%)
    • Crescimento Intrauterino Restrito (CIUR)
    • Repete em gestações futuras (5-15%)
    • O quadro hemodinâmico pode complicar com CIVD, insuficiência hepática, necrose cortical renal, necrose tubular aguda, pulmão do choque, hemorragia intracraniana, hemorragia puerperal e síndrome de Sheehan
Etiologia/Fatores de Risco
  • Hipertensão arterial sistêmica (principal fator, seja prévia ou associada à Pré-eclâmpsia)
  • Pré-eclâmpsia
  • Tabagismo
  • Cocaína / Crack
  • DPP anterior
  • Multiparidade
  • Desnutrição materna / carência de ácido fólico
  • Trombofilias
  • Brevidade de cordão absoluta ou relativa (por circulares)
  • Trauma materno (agressão, acidentes automobilísticos)
  • Descompressão uterina rápida (ex: ruptura de membranas em polidrâmnio, após parto de primeiro gemelar)
  • Implantação placentária sobre anomalia uterina/mioma
  • Rupreme pré-termo 
  • Corioamnionite
Diagnóstico
O diagnóstico é clínico. Deve-se presumir o diagnóstico de DPP em grávida hipertensa ou tabagista no último trimestre com qualquer grau de sangramento ou dor abdominal. Em 80% dos casos ocorre hemorragia externa, mas em 20% a hemorragia é interna, oculta. Na forma grave evolui para choque hipovolêmico, porém, na forma leve, pode apenas ser um achado ecográfico casual. Veja a tabela abaixo:
Classificação do DPP. Do livro Rotinas em Obstetrícia (Freitas et al, 2006)
A hemorragia, quando oculta, pode evoluir com uma complicação chamada Útero de Couvelaire, ou Apoplexia Uteroplacentária, caracterizada pela invasão do miométrio pelo sangramento retroplacentário em direção à cavidade peritoneal. A invasão miometrial pelo sangue leva à disfunção contrátil e hipotonia uterina.
Útero de Couvelaire, ou apoplexia uteroplacentária. Útero tomado por manchas roxas e avermelhadas que correspondem ao sangue que invade o miométrio na direção da cavidade peritoneal. Em 20% dos casos de DPP o útero evolui com hipotonia refratária à uterotônicos (ex: Ocitocina); isso geralmente ocorre nos casos de fibrinólise grave.

Conduta
O diagnóstico e a conduta precoces são fundamentais. Feito o diagnóstico, faremos uma abordagem clínica de urgência:
  • Obter dois acessos venosos periféricos calibrosos para reposição volêmica;
  • Instalar catéter vesical para medir o fluxo urinário orientar a terapia de reposição, objetivando 30-60mL/h
  • Gasometria arterial e amostra de sangue venoso para determinar:
    •  PO2, PCO2 (alta e baixa respectivamente sugerem evolução com pulmão do choque! Nesse caso podemos observar opacificações no RX Tórax)
    • Função renal (uréia e creatinina)
    • Fibrinogênio, TTPa, TP, plaquetas: fibrinogênio baixo, TTPa e TP prolongados, e plaquetas menor que 100.000 confirmam o diagnóstico de CIVD
Feita essa abordagagem inicial... partiremos para a conduta obstétrica.

Conduta Obstétrica
A não ser em casos leves de DPP (grau 0), é imprescindível prosseguir com o esvaziamento uterino de forma precoce, para evitar complicações. Nos casos de DPP grau 1 pré-termo, entretanto, é aceitável induzir a maturidade pulmonar fetal com corticóide em primeiro momento, sob vigilância rigorosa da vitalidade fetal, e após prosseguir com o parto. Nos demais graus, a conduta obstétrica é dividida em dois cenários:
  • Feto vivo: em geral a cesárea é o melhor procedimento. Está associada a uma significativa redução da mortalidade neonatal (OR: 0,10) (Witlin; Sibai, 2001). Porém, com trabalho de parto adiantado, segue-se a amniotomia, podendo-se realizar o parto por via baixa, sempre monitorando o frequência cardíaca fetal. A amniotomia, além de abreviar o parto, reduz o risco de CIVD, por reduzir a passagem de tromboplastina tecidual para a circulação materna!
  • Feto morto: quando ocorre o óbito fetal, isso indica que houve descolamento grave e que ocorreu há algum tempo, ocorrendo maior risco de complicações maternas nesse cenário. Recomenda-se, portanto, primeiro estabilizar a gestante (repor volemia, fatores de coagulação) e aguardar o parto vaginal em 4-6 horas. Fazer amniotomia e ocitocina.
Etiologia 2: Placenta Prévia
É a inserção da placenta no segmento inferior do útero, entre o feto e o canal de parto, ou seja, a placenta é "prévia" em relação ao feto. A principal morbidade ligada à PP é a hemorragia, que pode evoluir com choque hipovolêmico. Se divide em quatro tipos:
Fonte: Rotinas em Obstetrícia (Freitas et al 2006). A placenta prévia oclusiva completa ou total é uma indicação absoluta de parto cesareano.




Etiologia/Fatores de Risco
Podemos dividir os fatores de risco em três grupos: 
  1. Dano endometrial
  2. Hipóxia placentária com necessidade de maior amplitude de superfície.
  3. Miscelânea (só dois: etnia asiática e feto do sexo masculino)

Relacionados ao dano endometrial:
  • Cesáreas prévias (10% após 4 ou mais)
  • Multiparidade (0,2% nulíparas vs. 5% multíparas)
  • Idade > 40 anos
  • Manipulação uterina prévia (abortos, curetagens, biópsias)
  • Endometrites anteriores
Relacionados à hipóxia placentária:
  • Tabagismo
  • Gemelaridade
  • Altitude
  • Isoimunização Rh
Conceitos-chave:
  • Incide em 4:1000 gestações
  • Quando diagnosticada entre 10-20 semanas, 90% se resolverão espontaneamente até 28-32 semanas.
  • A clínica geralmente inicia com 28 semanas.
  • O quadro clínico é marcado por hemorragia "e mais nada", exceto por incremento na morbimortalidade fetal. Não há dor. A hemorragia é recorrente, progressiva, "paroxística", com início e fim abruptos.
  • Em 10% há dor porque há DPP concomitante.
  • Se associa com trabalho de parto prematuro. A incidência é crescente:
    • 3,5% com 28 semanas
    • 11,7% com 32 semanas
    • 16,1% com 34 semanas
  • Se associa com aumento da morbimortalidade perinatal: rupreme, infecção puerperal, atonia uterina, sangramento puerperal, crescimento intrauterino restrito, anemia materna.
  • Não espera-se hipertonia uterina, a menos que haja DPP associado
  • Não espera-se sofrimento fetal agudo, a menos que haja DPP associado, choque hipovolêmico ou acidente com o cordão umbilical
  • A apresentação fetal é frequentemente anormal ao exame físico:
    • 25-35x mais chance de apresentação transversa
    • 2-3x mais chance de apresentação pélvica
    • Se for cefálica, normalmente é alta e móvel
  • Toque vaginal e amnioscopia devem ser evitados, pelo risco de precipitar sangramento. O toque até pode ser realizado, mas somente na iminência do parto ou de sofrimento fetal, feito idealmente por profissional experiente e em ambiente cirúrgico (nesse caso, tudo deve estar preparado para uma cesareana de urgência, e a exploração digital revela o sinal clássico de massa esponjosa no segmento inferior.
Diagnóstico
Ultrassonografia é o melhor método para o diagnóstico e, a menos que haja sofrimento fetal ou parto imediato, deve ser feita para confirmar PP e localizar a placenta. A via transvaginal é a de escolha (não apresenta maior taxa de sangramento em relação à abdominal).

Conduta
A conduta dependerá de 
  • Idade gestacional (36 semanas é o ponto de corte para conduta conservadora X ativa)
  • Gravidade do sangramento
  • Tipo de placenta prévia (total? marginal? lateral? parcial?)
  • Apresentação fetal (frequentemente não-cefálica)
Gestantes com menos de 36 semanas deverão ser internadas, deixadas em repouso, receber reposição volêmica, e o feto deverá ser avaliado (há risco de hipóxia fetal). A inibição do trabalho de parto pré-termo, se presente, é controversa. Drogas usadas para isso como a nifedipina causa uma vasodilatação periférica e poderia produzir uma "síndrome do roubo". Está contraindicada em caso de sangramento ativo com repercussão hemodinâmica. No entanto, sabe-se que, por reduzir as metrossístoles, pode melhorar o sangramento. Se a IG for igual ou menor que 34 semanas, deve-se fazer corticóide para maturação pulmonar fetal. As evidências são insuficientes para recomendar cerclagem.

Gestantes com mais de 36 semanas receberão conduta ativa: parto. Se houver dúvida quanto à IG, pode-se fazer exames para avaliar maturidade pulmonar fetal. Ainda que não haja 36 semanas completas, a presença de um sangramento intenso que coloque em risco a vida da mãe ou feto também implica conduta ativa. A cesariana é a via de escolha na PP. Nas placentações laterais e/ou marginais, o parto transpelviano pode ser escolhido. Caso seja escolhido o parto transpelviano, as membranas devem ser rompidas precocemente (método de Puzos), pois a apresentação irá tamponar o bordo placentar, ajudando a conter o sangramento. A monitorização fetal deve ser contínua. A ocitocina pode ser usada como de costume, com o cuidado de não provocar hipertonia ou taquissistolia, pois ambos podem levar à hipóxia fetal. O misoprostol não deve ser utilizado. Dá-se preferência pela anestesia geral em relação à condutiva, pois a última pode causar vasodilatação e diminuição do retorno venoso. A taxa de mortalidade perinatal é de cerca de 10 vezes maior, e está ligada à ocorrência de prematuridade.

Etiologia 3: Acretismo Placentário
O acretismo é definido pela adesão patológica da placenta na parede uterina, podendo ocorrer de várias formas, num contínuo de gravidade:

  • Acreta: apenas aderencia patológica no endometrio
  • Increta: Penetra o miométrio
  • Percreta: Invade a serosa, perfurando-a, podendo atingir até mesmo órgãos vizinhos
A placenta increta e a percreta podem evoluir com ruptura uterina. Os fatores de risco para acretismo são:
  • Cesarianas prévias
  • Placenta prévia
  • Manipulação uterina (curetagens, etc)
  • Multiparidade
Observe a tabela abaixo, do livro Rotinas em Obstetrícia (Freitas et al 2006)
Observe que o risco de acretismo e histerectomia avança na medida em que cesareanas são realizadas.















Conduta
A conduta é complexa e controversa na literatura, mas, em síntese, podemos dizer que no caso da placenta acreta o manejo é conservador, e na placenta increta e percreta em geral é necessário histerectomia pós-parto.

Etiologia 4: Ruptura Uterina
Os fatores de risco são:

  • Misoprostol
  • Idade avançada
  • Multiparidade
  • Superdistensão uterina
  • Insistência no parto via baixa em casos de desproporção cefalo-pélvica não diagnosticada
  • Manobras intrauterinas intraparto (inclui uso inadequado de fórcipe)
  • Cesareanas prévias
  • Acretismo placentário (percreta e increta)
  • Pequeno intervalo entre gestações
Iminência de Rotura
É possível diagnosticar o momento que antecede a rotura uterina. Chamamos esse momento de Síndrome de Bandl-Frommel, decorrente de dois sinais com mais especifidade para esse diagnóstico, o sinal de Bandl (útero em ampulheta - banda fibrosa transversal no segmento inferior) e o sinal de Frommel (ligamentos redondos estirados, retesados e hipercontraídos). Sinais menos específicos são taquissistolia e hipertonia, e sinais sistêmicos "adrenérgicos" como palidez, sudorese, agitação.

Ruptura Consumada
Nos casos de ruptura completa, ocorre parada do trabalho de parto e fácil palpação de partes fetais (o feto é expulso para dentro da cavidade peritoneal). Pode ocorrer crepitação na parede abdominal, pela passagem de ar via vaginal (sinal de Clarke). Pode ocorrrer hipotensão e taquicardia reflexa (sangramento intenso). O sangramento é variável, vai de leve a muito intenso com morte fetal. O sofrimento fetal pode ser o único sinal de ruptura.

Conduta
A conduta depende do grau de suspeita. A cesareana deve ser imediata.

Etiologia 4: Vasa Prévia
Ocorre quando vasos desprotegidos transitam entre a apresentação e o canal de parto, no segmento inferior do útero. É rara, mas com alta taxa de mortalidade fetal (33-100%). Geralmente ocorre após amniotomia, pois a mesma leva a rotura do vaso e exsanguinação fetal. Também pode se apresentar com bradicardia fetal quando a apresentação comprime o vaso. O diagnóstico pode ser feito por amnioscopia ou toque vaginal. O uso do doppler colorido no pré-natal por via transvaginal aumentou o diagnóstico precoce dessa condição. A USG de segundo semestre deveria ser feita em todas as pacientes que apresentassem placenta lateral ou marginal baixa, placenta bilobada ou suscenturiada, gestação múltipla, fertilização in vitro e inserção baixa de cordão.

Agora que você já conhece os sangramentos da segunda metade, aproveite para relembrar as indicações clássicas de Cesareana:
Rotinas em Obstetrícia (Freitas et al 2006)



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